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A Assinatura Eletrónica na Contratação à Distância

(A propósito da pandemia COVID-19)

07/05/2020

1.    Introdução; as várias modalidades de assinatura eletrónica

Face à atual situação pandémica em que vivemos, devido à propagação descontrolada do vírus COVID-19, que dificulta a deslocação de pessoas, que, por imposição dos respetivos Estados em que residem, estão adstritas a um dever de confinamento, a assinatura manuscrita, necessária à celebração contratos ou à prática de determinados atos jurídicos pode levantar sérios inconvenientes, ou até mesmo obstáculos inultrapassáveis, à sua realização, pelo que se coloca a questão de saber se o ordenamento jurídico contempla, ao dia de hoje, soluções que permitam às partes assinar eletronicamente documentos à distância.

Presentemente, a lei portuguesa prevê várias formas de as partes assinarem eletronicamente documentos lato sensu por via eletrónica, com valor legal e força probatória diferenciada em função da modalidade de assinatura eletrónica utilizada.

O Decreto-Lei n.º 290-D/99 de 2 de Agosto, que aprovou o Regime Jurídico dos Documentos Eletrónicos e da Assinatura Digital (doravante “RJDEAD”), prevê duas modalidades de assinatura eletrónica: (i) a assinatura eletrónica simples e (ii) a assinatura eletrónica avançada, que inclui (iii) a assinatura eletrónica qualificada.

1.1.    A assinatura eletrónica simples (“AES”)
A assinatura eletrónica simples resulta de um processamento eletrónico de dados suscetível de (i) constituir objeto de direito individual e exclusivo e (ii) de ser utilizado para dar a conhecer a autoria de um documento eletrónico (artigo 2.º, alínea b) do RJDEAD).  

Este tipo de assinatura consiste num processo eletrónico utilizado com a simples intenção de manifestar uma aceitação de vontade, como acontece nos casos de assinatura de correio eletrónico: digitar o nome ou colocar uma imagem num documento; a digitalização de uma assinatura manuscrita ou clicar num botão que diz “li e aceito”, mas de difícil aplicação numa transação entre duas pessoas singulares ou entre duas pessoas coletivas que, por exemplo, pretendam celebrar um contrato de arrendamento – conclui-se, assim, que está este tipo de assinatura mais vocacionado para compras online em plataformas criadas para o efeito e para atos que não requerem, por imperativo legal ou por praxis, maior solenidade.

A assinatura eletrónica simples (não qualificada e certificada por entidade certificado credenciada) é equiparada à subscrição de um documento em suporte de papel com uma assinatura não reconhecida, sendo valorada no plano probatório nos termos gerais de direito (artigo 3.º, n.º 5 do RJDEAD).

1.2.    A assinatura eletrónica avançada (“AEA”)
A assinatura eletrónica qualificada é bastante mais sofisticada, sendo resultado de um processamento eletrónico de dados através de meios criptográficos, composto por um algoritmo ou série de algoritmos, mediante o qual é gerado um par de chaves assimétricas exclusivas e interdependentes, uma das quais privada e outra pública, que permite ao titular usar a chave privada para declarar a autoria do documento eletrónico ao qual a assinatura é aposta e a concordância com o seu conteúdo, e ao destinatário usar a chave pública para verificar se a assinatura foi criada mediante o uso da correspondente chave privada (artigo 2.º, alínea d) do RJDEAD).

A assinatura eletrónica avançada traz uma maior segurança às partes quando comparada com a assinatura eletrónica simples, na medida em que identifica de forma unívoca o titular como autor do documento, que o pode manter sob seu controlo exclusivo e detetar toda e qualquer alteração superveniente ao mesmo.
Esta modalidade de assinatura eletrónica beneficia da presunção de que o titular é autor do documento e confere-lhe a força probatória de um documento particular manuscritamente assinado (tal como previsto no 376.º do Código Civil (CC).

1.3.    A assinatura eletrónica qualificada (“AEQ”)
A assinatura eletrónica qualificada é uma modalidade de assinatura eletrónica com as exigências de segurança estabelecidas para a assinatura digital, que é gerada através de um dispositivo seguro de criação de assinatura certificado por uma entidade devidamente credenciada (alínea g) do artigo 2.º RJDEAD).

É a única modalidade de assinatura eletrónica assegurada por uma entidade certificadora1 e faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (artigo 376.º do CC, ex vi do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99).
A assinatura eletrónica qualificada pode ser utilizada para assinar contratos para os quais a lei exija a forma de documento escrito, designadamente:

(i)    contratos de arrendamento;
(ii)    contratos de financiamento bancários e civis até €25.000,00;
(iii)    promessas de cumprimento e de reconhecimento de dívida;
(iv)    acordo de cessação de contrato de trabalho; e
(v)    licença de direitos sobre marcas e patentes e a maioria dos acordos com intermediários financeiros.

A aposição de uma assinatura eletrónica qualificada num documento eletrónico equivale à assinatura autógrafa feita pelo próprio num documento com forma escrita sobre suporte de papel e cria a presunção de que a pessoa que apôs a assinatura é o titular desta, ou representante com poderes bastantes da pessoa coletiva titular da assinatura eletrónica qualificada - e também assegura que o documento eletrónico não sofreu alteração desde que lhe foi aposta (artigo 7.º, n.º1, alínea a) e n.º 3 do RJDEAD).

2.    Como posso passar a utilizar a assinatura eletrónica qualificada?
Quem pretenda utilizar uma assinatura eletrónica qualificada deve gerar ou obter os dados de criação e verificação de assinatura, bem como obter o respetivo certificado emitido por entidade certificadora (artigo 8.º do RJDEAD).
Presentemente existem, pelo menos, dois meios a que pessoas singulares e coletivas podem aceder para utilizar assinatura eletrónica qualificada: o cartão de cidadão2 e a chave móvel digital.

O cartão de cidadão tem, no seu chip, dois certificados: o certificado digital de autenticação (identifica o cidadão e permite o acesso aos serviços eletrónicos) e o certificado digital para assinatura digital qualificada (permite a assinatura digital de documentos), sendo necessário, para o efeito, um leitor de cartões de cidadão.
A ativação da chave móvel digital (CMD), pode ser feita usando o cartão de cidadão ou a senha do Portal das Finanças, no site www.autenticacao.gov.pt.

3.    E a celebração de negócios reais à distância, designadamente de contratos de compra e venda de imóveis?

Como referimos acima, atualmente já é possível a celebração de um conjunto de contratos que a lei sujeita a forma escrita através da aposição de uma assinatura eletrónica qualificada, com idêntico valor probatório do que feita de forma manuscrita, pelo que devemos questionar a sua relevância notarial, nomeadamente no que concerne à sua possível utilização na celebração de negócios jurídicos para cuja validade a lei exija documento autêntico (ou documento particular autenticado e submetido a depósito eletrónico por entidade com funções notariais, designadamente por advogado ou solicitador).

O Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de Janeiro, transpôs a Diretiva n.º 2000/31/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno (Diretiva sobre Comércio Eletrónico), bem como o artigo 13.º da Diretiva no 2002/58/CE, de 12 de Julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e a proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas (Diretiva relativa à Privacidade e às Comunicações Eletrónicas).

Este diploma introduz na ordem interna o regime jurídico do comércio eletrónico (“RJCE”) e assenta no princípio da liberdade de celebração de contratos por via eletrónica ou remota.

É expressamente anunciado no artigo 25.º, n.º 1 do RJCE que “(…) [é] livre a celebração de contratos por via eletrónica, sem que a validade ou eficácia destes seja prejudicada pela utilização deste meio.”.

Porém, o n.º 2 do referido preceito legal também expressamente refere, “dando com uma mão e tirando com a outra”, que “(…) [são] exluídos do princípio da admissibilidade” os “negócios legalmente sujeitos a reconhecimento ou autenticação notariais” e “reais imobiliários, com exceção do arrendamento” (alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 25.º do RJCE).

A não sujeição daqueles negócios ao princípio geral da admissibilidade da contratação eletrónica ao abrigo do referido regime, em nosso entender, pretende apenas garantir que o controlo da legalidade deve continuar a ser assegurado através de intervenção notarial, ou de entidade equiparada no exercício de funções semelhantes, que dê fé pública ao documento e que as partes não podem prescindir do controlo de um terceiro imparcial na “fiscalização” do negócio, designadamente no cumprimento das formalidades exigidas por Lei para o efeito e no cumprimento da solenidade exigida para a segurança jurídica do ato.

Com efeito, quer os instrumentos notariais (designadamente a escritura pública de compra de venda de imóveis), quer os documentos particulares estão sujeitos a formalidades legais comuns: “a menção de haver sido feita a leitura do instrumento lavrado, ou de ter sido dispensada a leitura dos intervenientes, bem como a menção da explicitação do seu conteúdo” (alínea l) do n.º 1 do artigo 46.º, n.º 1 e 151.º, n.º1, alínea a), do Código do Notariado – “CN”), a qual tem de ser feita “em voz alta e na presença simultânea de todos os intervenientes” (artigo 50.º, n.º 1 do CN), antes de as partes assinarem o documento.

Nesta sede levanta-se a questão de saber se a expressão “presença simultânea de todos os intervenientes”, em cenário de COVID-19 deve ser alvo de uma interpretação atualista (artigo 9.º, n.º 1 do CC), entendida no sentido de que, face às “circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que se pretendia ver aplicada”, uma presença virtual simultânea é suficiente para o efeito?

Atualmente, é possível a um notário ou advogado/solicitador, convocar as partes para uma videoconferência (designadamente por Skype ou através de outra plataforma semelhante) e assegurar, ainda que à distância, a presença virtual simultânea de todos os intervenientes e cumprir as formalidades notariais exigidas para o efeito, designadamente o artigo 50.º do CN, apurando-se dessa forma a vontade livre e esclarecida das partes.

Por conseguinte, a resposta seria afirmativa, no sentido de se considerar, no âmbito dos requisitos legais, tendo em conta o fim teleológico da norma em análise, a celebração dos atos notariais por via eletrónica, designadamente tendo em conta os meios tecnológicos atualmente disponíveis (que, mais do que nunca, evoluíram e proporcionam a reflexão em causa). No entanto, dada a insegurança jurídica que criaria tal entendimento e consequente prática, incomportável para as partes no exercício dos seus direitos, na medida em que não existe uma previsão legal expressa nesse sentido, e que levaria os Conservadores, na qualidade de “guardiões” da legalidade formal e substancial dos atos sujeitos a registo, a poder não aceitar tais práticas, entendemos que a questão poderá e deverá ser ultrapassada através de uma intervenção legislativa que preveja, de forma clara e inequívoca, a utilização da via eletrónica para a realização formal destes negócios  e prevista na lei, permitindo, assim, a celebração de escrituras públicas, procurações e formalização de outros documentos particulares autenticados por via eletrónica.

4.    O Decreto-Lei n.º 16/2020, de 15 de abril - Normas excecionais e temporárias destinadas à prática de atos por meios de comunicação à distância

No âmbito do conjunto de medidas de mitigação provocado pelo COVID-19, foi publicado o Decreto-Lei n.º 16/2020, de 15 de abril, com entrada em vigor no dia seguinte, que vem estabelecer um conjunto de normas excecionais e temporárias destinadas à prática de atos por meios de comunicação à distância.

Como resulta do preâmbulo do diploma, o Governo procurou encontrar um conjunto de soluções que assegurassem, apesar de todas as limitações existentes, que a economia continuasse a funcionar, designadamente viabilizando a prática de alguns atos à distância.

Destacam-se, com relevância para o tema em análise, as seguintes medidas previstas no referido diploma:

(i)    A utilização, pelos intervenientes processuais, pelo juiz de paz e pela secretaria, do do correio eletrónico, do telefone, da teleconferência ou da videochamada como meios de comunicação à distância para a prática de atos em processos urgentes que corram termos nos julgados de paz;

(ii)    Os pedidos de registo civil, de veículos, comercial e predial que, não podendo ser efetuados online através do sítio na Internet do IRN, I. P., possam ser enviados para o endereço de correio eletrónico do respetivo serviço de registo, ou por outra via eletrónica a definir pelo conselho diretivo do IRN, I.P.;

(iii)    O pagamento de emolumentos devidos pelos atos de registo pedidos por meios eletrónicos cujo pedido não possa ser efetuado online através do site do IRN, I.P., passa a poder ser efetuado através dos meios eletrónicos disponíveis, designadamente com recurso a referência de pagamento disponibilizada pelo serviço de registo e, a título excecional, por cheque sacado sobre entidade com representação em Portugal ou por vale postal;

(iv)    A possibilidade de os respetivos gerentes, administradores e secretários de sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial poderem certificar a conformidade dos documentos eletrónicos entregues com a submissão dos pedidos de registo online e, assim, certificar a conformidade dos documentos eletrónicos por si entregues, através do sítio na Internet, com os documentos originais;

(v)    Atribui-se natureza urgente, para os referidos efeitos, a atos de registo comercial que tenham por objeto registos de constituição de sociedades, aumento e redução de capital e a designação de gerentes.

Contudo, o diploma não prevê qualquer medida legislativa destinada a permitir a celebração de escrituras públicas e de documentos particulares autenticados, que tenham por objeto direitos reais sobre imóveis, por outra via que não a presencial (designadamente por via eletrónica), designadamente contrato de compra e venda de imóveis, bem como a formalização à distância de procurações por parte de nacionais ou estrangeiros, o que deveria ser equacionado numa futura iniciativa legislativa do Governo, mediante, naturalmente, prévia audição das Ordens dos Notários e dos Advogados, de forma a permitir, em cenário de pandemia (que não se sabe quando terá o seu termo…) ou em situações com semelhante impacto no tráfego jurídico, a realização de negócios para os quais é exigida solenidade acrescida, tais como transações imobiliárias, ainda que a título excecional e transitório.

Foi noticiado pelos órgãos de comunicação social que nos próximos dias, vai ser discutida (e esperemos que aprovada), em Conselho de Ministros, uma revisão deste regime com vista a viabilizar os meios eletrónicos na execução de atos jurídicos notariais, e que na sua grande parte, com exceção de testamentos e habilitações notariais, por exemplo, já podem ser formalizados também mediante a intervenção de advogados e solicitadores.  

Aguardamos com antecipação este potencial avanço legislativo, na esperança de que, neste caso, a realidade não preceda o direito, e que este contribua, de forma decisiva, para o desenvolvimento da atividade económica, promovendo, para o futuro e para além da pandemia do COVID 19, cujo fim todos queremos para breve, a prática célere, segura e simples dos negócios em geral, e em especial os respeitantes ao comércio jurídico imobiliário.

 

 

1A entidade certificadora é responsável por criar ou fornecer meios para a criação da assinatura e poderá, também, certificar a posição empresarial do titular para que seja possível vincular uma Pessoa Coletiva num contrato ou para participar em plataformas eletrónicas de contratação pública, com a Assinatura Eletrónica Qualificada emitida especificamente para esse efeito.
Através do site www.autenticacao.gov.pt, é possível associar a qualidade de administrador, gerente ou diretor ao cartão do cidadão para poder assinar enquanto tal.
Uma vez emitido o certificado, ao administrador, gerente ou diretor é dada a capacidade para assinar eletronicamente quaisquer contratos e documentos que a lei permita (como por exemplo movimentação de contas bancárias e as atas contendo as deliberações dos órgãos da sociedade).
Existe ainda um Sistema Público de Certificação de Atributos Profissionais (SCAP), como prevê, por exemplo, o artigo 546º do Código das Sociedades Comerciais, que permite, através do Cartão de Cidadão ou chave móvel digital certificar a qualidade de titular de um órgão social ou de um atributo profissional.

2Os artigos 8.º e 18.º da Lei nº 7/2007, de 5 de Fevereiro, que cria o cartão de cidadão e rege a sua emissão e utilização estatuem que com o cartão de cidadão é emitido um certificado para autenticação e um certificado qualificado para assinatura eletrónica qualificada necessários à sua utilização eletrónica.

 

 

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