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Meet the Law | Análise do Acórdão nº 2/2021

No dia 5 de agosto de 2021 foi publicado em Diário da República o Acórdão n.º 2/2021 (o “Acórdão”) proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”), no âmbito do processo n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A.

Em sede de recurso para uniformização de jurisprudência, a querela subjacente ao Acórdão prende-se com a seguinte questão: no âmbito de um processo de insolvência, a venda faz caducar o contrato de arrendamento de imóvel com hipoteca registada em data anterior à da celebração de tal contrato de arrendamento, nos termos do n.º 2, do artigo 824.º do Código Civil?  

Da análise enunciada no Acórdão é possível conhecer os diversos e distintos argumentos apresentados com vista a sustentar (i) a posição de que com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respetivo locatário, considerando-se, para o efeito, a aplicação do n.º 2, do artigo 824.º do Código Civil - os quais se encontram, na sua maioria, descritos em declaração de voto vencido - ou, em alternativa, (ii) que o n.º 2, do artigo 824.º, do Código Civil não se aplica ao caso sub judice de forma direta, nem tão-pouco, de forma “lógica parcial”, i.e. através de analogia para integração de lacuna, considerando-se, consequentemente, que o contrato de arrendamento, em tais circunstâncias, não caduca.

Os principais argumentos apresentados com vista a sustentar a não caducidade do contrato de arrendamento na situação em análise foram, em resumo, os seguintes:

  1. A natureza obrigacional do contrato de arrendamento. O mencionado tipo contratual não confere ao arrendatário um direito real mas, apenas, um direito de crédito. A este respeito note-se que “as disposições que concedem ao locatário tratamento jurídico análogo ao dos direitos reais são raras e de natureza incontestavelmente excecional” (cfr. Acórdão);
  2. A letra do n.º 2, do artigo 824.º, do Código Civil. O citado artigo não abrange os contratos de arrendamento, limitando-se a estabelecer que “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.”. A ratio de tal preceito é, bem assim, assegurar que o valor do bem alienado em sede de execução judicial, pelo facto de sobre o mesmo incidirem direitos reais, não sofrerá uma significativa e lesiva desvalorização ou depreciação, pretendendo-se, desse modo, proteger os respetivos credores;
  3. Não é defensável a aplicação analógica do n.º 2, do artigo 824.º, do Código Civil. Considera-se, aliás, que não existe qualquer lacuna legal que permita ou implique tal interpretação da norma. Tal exercício seria, até, desconforme com o seu sentido literal e teleologicamente inadequada;
  4. Aplicação do artigo 109.º, n.º 3, do CIRE. Refere-se que no acórdão fundamento, nem implícita, nem explicitamente foi ponderada a aplicação do disposto no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE. O referido artigo prevê que “A alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância.”. Acresce ainda que o citado n.º 3, do artigo 109.º é, em si, uma norma excecional, a qual não pode ser derrogada;
  5. Aplicação do artigo 1057.º, do Código Civil. Não é defensável afastar o regime legal estabelecido nos artigos 1057.º e 1051.º do Código Civil com o fundamento de que tais normativos não são taxativos e que existe uma norma própria que regula a venda judicial (i.e., o n.º 2, do artigo 824.º, do Código Civil);
  6. O regime jurídico do arrendamento assume, atualmente, um caráter profundamente transitório. A este respeito é evidenciado que as alterações legislativas operadas neste instituto acentuaram o seu carácter transitório e, face ao mecanismo de atualização das rendas, não se pode, sem mais, defender que o arrendamento implica uma desvalorização do bem imóvel.

O referido Acórdão confirma o Acórdão recorrido, tendo sido extraído como segmento uniformizador que “A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil.”.

Cumpre ainda realçar que os argumentos tecidos e a decisão proferida não foram unânimes entre os Exmos. Juízes Conselheiros, uma vez que vários Juízes Conselheiros votaram vencido.

O texto integral do Acórdão do Supremo Tributal de Justiça n.º 2/2021, de 5 de agosto pode ser consultado aqui.

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João Pinheiro da Silva
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Sandra Teixeira Arsénio
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